No Brasil, mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar que abortam fora das três hipóteses legalmente permitidas (risco à vida da gestante, estupro, ou feto anencéfalo) correm o risco de serem condenadas em até três anos de prisão. Essa proibição desproporcional as leva a recorrer a abortos inseguros, que são a quarta principal causa de morte materna no Brasil – o maior país da América Latina.
O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, tem uma oportunidade histórica de mudar essa realidade preocupante, que coloca em risco a vida de pessoas com capacidade de gestar. O tribunal começou a votar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442) ajuizada em 2017 pelo PSOL. A ação visa a declarar a incompatibilidade dos artigos 124 a 127 do Código Penal com Constituição Federal, buscando, assim, a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.
Em 2018, a Ministra Rosa Weber, relatora do caso, convocou uma audiência pública sobre o assunto, na qual mais de 40 organizações apresentaram argumentos a favor e contra a descriminalização. A Ministra, que se aposentou no dia 2 de outubro, deixou o seu voto a favor da descriminalização em sessão virtual. Logo em seguida, o Ministro Luís Roberto Barroso, novo presidente do tribunal, suspendeu o julgamento do caso com seu pedido de destaque. O processo seguirá em sessão presencial no Plenário, porém ainda sem data definida para tanto.
Nesse sentido, os demais ministros seguirão a votação quando o tribunal retomar a sessão presencialmente. Também não há data definida para o desfecho jurídico deste caso, já que, no interregno do julgamento, os Ministros podem pedir vista, tendo até noventa dias para devolvê-lo para votação. Neste artigo exploramos a argumentação jurídica da ex-Ministra Rosa Weber em seu voto histórico na ADPF 442.
Resumo do voto da Ministra Weber
Seu voto inicia rejeitando o argumento do Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União de que o aborto deve ser tratado por meio da via legislativa com os representantes eleitos pela população. Argumento, inclusive, semelhante àquele adotado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Dobbs v. Jackson. A Ministra afirma que, em razão do Brasil ser uma democracia constitucional, o STF tem o poder de determinar a constitucionalidade das leis aprovadas no Congresso Nacional e de garantir que os direitos das minorias sejam respeitados. Segundo ela, decidir sobre a inconstitucionalidade da criminalização do aborto não violaria o princípio da separação de poderes. Pelo contrário, a revisão judicial reforça esse princípio e fortalece o sistema de freios e contrapesos.
A análise sobre o mérito gira em torno de quatro aspectos principais: (1) a proteção constitucional do direito à vida; (2) os direitos das mulheres; (3) os direitos sexuais e reprodutivos; e (4) a justiça social reprodutiva.
Primeiramente, a Ministra analisa a suposta proteção do feto na legislação constitucional brasileira, concluindo que a Constituição Federal concede direitos apenas às pessoas já nascidas. Logo, o direito à vida não seria absoluto, mas gradual e incremental. Ela pontua que a ausência de direitos constitucionais do feto não significaria que ele não tenha “valor digno de proteção”. Contudo, essa controvérsia é resolvida por meio do teste de proporcionalidade abordado no final de sua decisão.
Em segundo lugar, o voto enfatiza o direito à saúde reprodutiva como integrante dos direitos fundamentais das mulheres, sendo digno de proteção constitucional. Nesse sentido, gestações forçadas constituem uma forma de violência institucional e, de outro lado, a autonomia é um aspecto essencial do direito à liberdade, incluindo a liberdade reprodutiva. Todavia, a Ministra não faz referência à noção de um direito autônomo constitucional de decidir, como fizeram outros tribunais na região.
Terceiro, a Ministra afirma que os direitos sexuais e reprodutivos são protegidos diretamente pela Constituição Federal por meio dos direitos à saúde, seguridade social e planejamento familiar, e indiretamente pelos direitos à igualdade, privacidade, liberdade e vida privada. Destaca a proteção da liberdade reprodutiva das mulheres, no âmbito da autonomia do planejamento familiar, contra interferências estatais injustificadas. Com base em uma análise de direito internacional e comparado, ela conclui que o Brasil tem a obrigação de criar um “sistema de justiça social reprodutiva” com base em quatro elementos do direito à saúde: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, conforme definido pelo Comentário Geral nº 22 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Em quarto lugar, a promoção da saúde reprodutiva das mulheres ganha centralidade na decisão como uma questão de justiça social reprodutiva, pois o constitucionalismo contemporâneo coloca a saúde sexual e reprodutiva enquanto uma questão de saúde pública e direitos humanos. Nesse contexto, um sistema de justiça social reprodutiva fornece as respostas mais adequadas para o problema, consistindo em medidas preventivas destinadas a evitar gestações indesejadas e medidas remediativas que garantam o acesso a serviços de aborto seguro. Nesse enquadramento do voto, o aborto deve ser considerado uma resposta apropriada dentro da justiça reprodutiva, juntamente com medidas educacionais e preventivas.
Por fim, a Ministra aplica o teste de proporcionalidade para avaliar o uso da lei penal como forma de proteger o feto. No raciocínio jurídico, ela conclui que a criminalização do aborto: (1) não é adequada, pois não alcança o propósito de proteger o feto, uma vez que os dados mostram que ela não desencoraja de realizar abortos; (2) não atende ao critério da necessidade, pois políticas de saúde pública provaram ser mais eficazes na proteção do feto e da vida da mulher que a criminalização do aborto; e (3) é desproporcional, uma vez que dá prevalência absoluta ao feto, perpetua a discriminação de gênero e tem um impacto desproporcional sobre mulheres negras e pobres.
Três conclusões a partir da decisão da Ministra Rosa Weber
A ênfase dada à justiça social reprodutiva reflete a necessidade de uma abordagem abrangente e baseada em direitos para a saúde reprodutiva, que priorize a autonomia individual e reconheça as implicações mais amplas da saúde reprodutiva das mulheres na saúde pública e nos direitos humanos. Essa necessidade de substituir o uso da lei penal por políticas públicas está alinhada com os desenvolvimentos no direito constitucional internacional e comparado. A Corte Constitucional da Colômbia, em sua decisão que descriminalizou o aborto até a semana 24, instou os poderes executivo e legislativo a implementar uma política pública abrangente que protegesse tanto as mulheres quanto o feto, sem afetar os direitos e a dignidade das mulheres.
Ademais, o voto da Ministra não apenas declara a criminalização do aborto como inconstitucional no primeiro trimestre, mas também define o aborto no primeiro trimestre como um direito, dando origem a um novo direito protegido constitucionalmente.
Como última conclusão, a decisão é fortemente influenciada pelo direito internacional e comparado, trazendo uma perspectiva global e uma abordagem de direitos humanos para seu raciocínio jurídico. O voto aborda diversos tratados e decisões dos sistemas de direitos humanos universal, europeu e interamericano; planos de ação adotados em conferências internacionais; bem como jurisprudência constitucional de diversos tribunais superiores em diferentes regiões do mundo.
A Ministra Weber enfatiza que o diálogo entre jurisdições nacionais e internacionais promove a “migração de ideias e soluções normativas”. Ela também destaca a natureza vinculativa das normas internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e sua obrigação de aplicar a doutrina do controle de convencionalidade, uma vez que o país é parte da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Embora o resultado da demanda constitucional permaneça incerto, o voto da Ministra Rosa Weber é um passo importante em direção à plena realização dos direitos de pessoas com capacidade de gestar no Brasil. Se os demais ministros abraçarem essa oportunidade histórica e a decisão majoritária for favorável, o caso representará uma vitória na onda verde de descriminalização do aborto na América Latina.
Nota das autoras: O termo “mulheres”, em vez de “mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar” pode ser usado ao longo deste texto para refletir a linguagem utilizada na decisão em questão. As autoras reconhecem a importância e apoiam o uso de linguagem inclusiva ao abordar essa temática.